5.11.2005

Ela era

Era uma pequena menina de olhos grandes.
Grandes olhos vermelhos que mais pareciam uma flor.
Um lilás. Quando caía, sempre pensava que tinha quebrado a perna.
E saía mancando. Quando não caía, sempre pensava que era bailarina.
A menina acordou e se olhou no espelho.
Os dentes brancos, a pele morena, os olhos. Continuava tudo no lugar. E ela sempre pensava como era incrível que ela, todo hoje, fosse igual a ela ontem. Mas muito diferente dela no ano passado. Será que ela sempre se esquecia de olhar no espelho justamente no dia em que mudava? Calçou sua botina e foi para a aula.
E lá ela tinha que fazer uma redação, mas não sabia o que escrever.
Então, resolveu fazer uma redação sobre uma menina que tinha que fazer uma redação mas não sabia o que escrever.
Como agora.
E a redação ficou assim:

"Era uma vez, uma menina linda de grandes olhos vermelhos. Um dia, ela calçou sua botina e foi para a escola. Chegando lá, a professora mandou que ela fizesse uma redação.
E ela perguntou: sobre o quê?
E a professora deu a resposta de sempre: tema livre.
E a menina, que sempre entendia o que as pessoas diziam, mas não o que queriam dizer, entendeu: tem mão livre.
Então, essa menina resolveu fazer uma redação sobre uma menina que precisava fazer uma redação mas não sabia o que escrever, que tinha uma mão livre e uma professora preguiçosa.
A menina colocou seu braço sobre a carteira, pegou o lápis e ia colocando a mão sobre o papel para iniciar sua história. Mas a mão não quis. A mão da menina tinha entendido que ela era livre. E agora não queria mais obedecer à menina e seus neurônios.
A menina não sabia o que fazer. Resolveu respirar fundo, que era o que sua mãe sempre dizia para ela fazer quando também a mãe não sabia o que fazer ou o que dizer pra fazer. Ou as duas coisas. Nada aconteceu.
Que era o que sempre não acontecia quando ela respirava fundo.
A mão tinha entendido que era livre e pronto. Porque liberdade é como picolé. Se você já tirou a embalagem, não tem mais como voltar o picolé pra dentro.
E a mão da menina tinha entendido isso. Já estava até um pouco gelada.
Enquanto a menina lutava com sua mão, a professora passeava pela sala e viu isso. Ela disse para a menina: Não! Fale de outra coisa. Já há histórias de mãos independentes na literatura.
E a menina tentou explicar que a culpa era da mão. Era ela que fazia isso.
Mas a professora não ouvia.
Ficava sempre a dizer as suas palavras preferidas sem se importar com o que os outros preferiam. Concentração, início, meio e fim, legível, trinta linhas, ortografia, sintaxe, simpático e parassimpático (ela queria ser a professora de ciências), amebas e congruentes.
E a menina entendeu então. Entendeu neste momento. Entendeu a simpática corda vocal da professora. E seu parassimpático tímpano. Entendeu o simpático Sol e a parassimpática brisa. Entendeu a simpática mãe parassimpática que tinha. E entendeu os tios parassimpáticos, a avó simpática e o irmão parassimpático que estava na barriga da mãe. Entendeu sua simpática mão e seus parassimpáticos olhos.
O menino parassimpático ao lado fazia um desenho em sua folha. E o desenho era de um elefante chorando. E o desenho era a redação mais linda que a menina já tinha visto. E lido. E os olhos do menino eram parassimpaticamente tristes. Como os seus.
E ela entendeu o que nunca tinha entendido antes. Mas entendeu também que não queria entender. E quanto mais ela entendia, menos ela queria. E de tanto entender, tanto, tanto, ela deixou de querer.
E não quis mais fazer redação nenhuma.
Fechou seu caderno e foi querer nada em outro lugar.

2 comentários:

Anônimo disse...

adoro este, é singelo, direto e solto que nem criança, que nem ela, ou você. parabéns por recomeçar esse negócio aqui. sinto-me quanse uma avó da nova criança. :)

Anônimo disse...

oba, coisa de vó é sempre aconchegante.